Às vezes, o emprego de uma única palavra em uso comum dá toda uma visão de mundo diferente. Havia apenas um uso na manchete de uma história no jornal Guardian no final do mês passado: “Como os ‘rapazes de Pompey’ caíram nas mãos do Isis”.

Pompey é o nome coloquial para Portsmouth, a cidade naval da costa sul da Inglaterra, e os “rapazes” da manchete eram cinco jovens garotos de origem bangali que cresceram lá e mais tarde se juntaram ao ISIS na Síria. O artigo descreve como o último dos cinco foi morto agora, três outros foram mortos antes dele e um, que retornou à Bretanha, que foi sentenciado a quatro anos de prisão (na prática dois anos, com remissão por bom comportamento). O uso da palavra “rapazes” destina-se a implicar aos leitores do jornal que não havia nada de diferente ou especial sobre esses cinco jovens rapazes, nada que distinguisse eles de outros jovens rapazes de Portsmouth. Esse uso foi uma manifestação do pensamento ilusório ou mesmo mágico, como se a realidade por si mesma pudesse ser alterada de uma maneira desejada pelo mero emprego da linguagem.

Mas a palavra que implicou toda uma visão de mundo foi “caíram”. De acordo com a manchete, os jovens rapazes “caíram” nas mãos do ISIS como uma maçã cai passivamente no chão pela força gravitacional. A palavra sugere que isso poderia ter acontecido com qualquer um, essa ida à Síria via Turquia para se juntar a um movimento que se delicia na decapitação e outras atividades em nome de uma religião – a religião deles. Participar do ISIS é como esclerose múltipla; é algo que simplesmente acontece com as pessoas.

A palavra “caíram” nega o protagonismo dos jovens rapazes, como se eles não tivessem escolha no assunto. Eles foram vítimas da circunstância pela virtude de serem membros de uma minoria, pois minorias são por definição vítimas sem protagonismo.

Há um estranho paralelo aqui com a forma como os viciados em heroína se explicavam para mim. Quando eu perguntei a eles o porquê eles começaram a usar heroína, eles quase sempre respondem que eles “se envolveram” com o grupo errado, novamente passivamente, como se por algum tipo de força natural. Por este meio eles negavam a responsabilidade pela sua situação, embora fosse óbvio que eles não só se envolveram como também procuraram o grupo errado. Eles sabiam que a explicação deles era falsa, porque eles riram quando eu disse o quão estranho era que eu conhecesse pessoas que se envolveram com o grupo errado, mas nunca qualquer membro do próprio grupo errado.

Mas este relato inventado de “cair” na dependência das drogas é frequentemente aceito em valor nominal por intelectuais esquerdistas que querem dividir a humanidade na pequena minoria de pessoas com protagonismo (perpetradores) e a vasta maioria sem protagonismo (vítimas) – os últimos requerendo a salvação dos intelectuais esquerdistas. Os ricos e poderosos são perpetradores com protagonismo; todos os demais são vítimas sem protagonismo. Para preservar essa visão de mundo, os rapazes de Portsmouth tiveram que ser descritos como “caíram” nas mãos do ISIS.

 

Artigo original

Tradução de Bruno Cavalcante
Revisão por Larissa Guimarães

Theodore Dalrymple

Theodore Dalrymple é médico psiquiatra e escritor. Aproveitando a experiência de anos de trabalho em países como o Zimbábue e a Tanzânia, bem como na cidade de Birmingham, na Inglaterra, onde trabalhou como médico em uma prisão, Dalrymple escreve sobre cultura, arte, política, educação e medicina. Além de seu trabalho em medicina nos países já citados, ele já viajou extensivamente pela África, Leste Europeu, América Latina e outras regiões.