Esta é a tradução de um texto originalmente publicado no Journal des Économistes, vol. 20, no. 82, de 15 de junho de 1848. Todas as notas do texto são de Roderick Long.

 

***


Nós somos adversários, contudo buscamos o mesmo objetivo. Qual é o objetivo comum dos economistas e socialistas? Não é uma sociedade em que a produção de todos os bens necessários à manutenção e ao embelezamento da vida seja tão abundante quanto possível, e em que a distribuição desses mesmos bens entre aqueles que os criaram através do trabalho seja tão justa quanto possível? Não pode o nosso ideal comum, à parte de todas as distinções de escolas, ser resumido nessas duas palavras: abundância e justiça?

Tal, nenhum de vocês pode negar, é o nosso objetivo comum. Somente o propomos alcançar por caminhos diferentes; vocês prosseguem pela obscura, estreita e até hoje inexplorada via da organização do trabalho, ao passo que nós prosseguimos pela ampla e bem conhecida estrada da liberdade. Cada um de nós tenta encaminhar uma hesitante e tateante sociedade que, em vão, procura no horizonte a coluna de luz que anteriormente guiou os escravos dos Faraós à Terra Prometida.

Porque vocês se recusam a seguir o caminho da liberdade junto a nós? Porque, vocês dizem, essa liberdade que nós exaltamos é fatal para os trabalhadores; porque ela até agora só produziu a opressão dos fracos pelos fortes; porque ela deu origem a crises desastrosas nas quais milhões de homens perderam em alguns casos suas fortunas e em outros suas vidas; porque a liberdade desenfreada, desregulada e ilimitada é a anarquia!

Não é essa a razão pela qual vocês rejeitam a liberdade? Não é essa a razão por que vocês demandam a organização do trabalho?

Então, se nós provarmos a vocês com suficiente clareza que todos os males que vocês atribuem à liberdade — ou, para fazer uso de uma expressão equivalente, à livre competição — têm suas origens não na liberdade, mas na ausência da liberdade, no monopólio, na servidão; se nós ainda provarmos a vocês que uma sociedade de perfeita liberdade, uma sociedade livre de todas as restrições, de todas as cadeias, tal como nunca foi vista na história, não possuiria a maior parte das misérias do presente regime; se nós provarmos a vocês que a organização de tal sociedade seria a melhor, a mais justa, a mais favorável ao avanço da produção e da igualdade da distribuição de riqueza; se nós provarmos tudo isso, eu pergunto, qual seria a resposta de vocês? Vocês continuariam a proscrever a liberdade do trabalho e a censurar a economia política, ou passariam a carregar abertamente nosso estandarte e a empregar toda a preciosa reserva de forças intelectuais e morais que a natureza lhes concedeu para acelerar o triunfo de nossa doravante causa comum, a causa da liberdade?

Ah! eu poderia jurar que vocês não hesitariam por um momento. Se vocês ficassem certos de que estavam errados quanto à verdadeira causa dos males que afligem a sociedade e aos meios de remediá-los; se vocês ficassem certos de que a verdade está do nosso lado e não no de vocês, nenhum laço de vaidade, de ambição ou de partidarismo teimoso seria forte o suficiente para mantê-los do lado do erro: seus corações se entristeceriam, sem dúvida; vocês dariam com pesar um último adeus aos sonhos que alimentaram, encantaram e enganaram suas imaginações; mas no final vocês abandonariam essas amadas quimeras, vocês superariam sua repugnância e se aproximariam de nós. Por Deus, faríamos o mesmo, de nossa parte, se vocês conseguissem introduzir em nossos débeis intelectos um raio daquela luz que converteu São Paulo; se vocês demonstrassem, de forma clara como o dia, que a verdade está com o socialismo e não com a economia política. Nós favorecemos nosso sistema somente porque acreditamos que ele seja verdadeiro e justo; nós queimaríamos amanhã, sem revoltas internas, o que nós temos adorado e adoraríamos o que queimamos se nos fosse provado que nossos deuses, Smith, Turgot, Quesnay e J.B. Say, não são mais que infelizes ídolos de madeira. [Nota: são economistas liberais clássicos Adam Smith (1723-1790), Anne-Robert-Jacques Turgot (1727-1781), François Quesnay (1694-1774) e Jean-Baptiste Say (1767-1832).]

Nós e vocês, portanto, estamos igualmente livres de partidarismos teimosos, tomando este termo em seu estrito sentido; nossas opiniões são elevadas a uma esfera mais alta, nossos pensamentos seguem um vôo mais generoso: é a verdade, a justiça e a utilidade que são nossos guias imortais através dos círculos escondidos da ciência; é a humanidade que é a nossa adorada Beatriz! [Nota: uma referência ao guia de Dante através do paraíso na Divina Comédia.]

Isso estando bem entendido entre nós, eu exponho claramente a questão que nos separa.

Vocês mantêm que a sociedade sofre por conta da liberdade, nós mantemos que ela sofre por conta da servidão.

Vocês concluem que é necessário abolir a liberdade e colocar em seu lugar a organização do trabalho; nós concluímos que é necessário abolir a servidão e colocar em seu lugar a liberdade, pura e simples.

Comecemos por especificar os fatos. Desde quando data a liberdade do trabalho? Ela foi proclamada pela primeira vez por Turgot em um édito imortal [Nota: em 1776, durante o termo de Turgot como ministro das finanças], e mais tarde sancionada pela Assembléia Constituinte.

Eu falarei mais tarde sobre como essa sagrada liberdade foi novamente diminuída e agrilhoada; por ora, eu me restringirei a notar que ela foi nascida somente no fim do século XVIII.

Agora, eu lhes pergunto, qual era a condição das massas trabalhadoras até o fim do século XVIII? Os trabalhadores estavam mais felizes antes desse momento do que se tornaram depois?

Se eles estavam mais felizes, oh! então eu concordarei com vocês que a liberdade foi um presente fatal para o mundo, e vocês têm o direito de reclamar uma organização do trabalho modelada sobre aquela do antigo Egito ou da Europa medieval.

Mas se, pelo contrário, a condição da massa de pessoas hoje é superior àquela de 89 [Nota: 1789, inter alia o primeiro ano da Assembléia Constituinte e, assim, para Molinari o primeiro ano de (relativa) liberdade trabalhista], vocês não serão obrigados a reconhecer que a liberdade do trabalho foi um benefício para a humanidade?

Atravessemos juntos rapidamente a história do passado, a história desses trinta séculos de servidão que precederam a chegada da liberdade do trabalho e vejamos que espetáculo ela oferece à nossa visão.

É ela o verdadeiro espetáculo da tranqüilidade e da igualdade? Queria Deus que fosse! Mas não. É, pelo contrário, uma história de miséria mais intensa e de uma desigualdade mais profunda que essa que nos aflige hoje em dia. E quanto mais formos ao passado, nos distanciando ainda mais do dia quando a liberdade finalmente brilhou na terra, mais negra e hedionda miséria nos aparece.

Se nós formos até a Índia e o Egito, o que observaremos? Duas castas poderosas, a casta dos sacerdotes e a dos guerreiros, oprimindo e explorando sem piedade a multidão miserável. No ponto mais alto dessas sociedades primitivas, construídas em camadas empilhadas umas sobre as outras como blocos de granito, encontramos os sábios, vestidos de roxo, discutindo a essência da divindade ou o curso das estrelas, e os guerreiros se intoxicando de perfumes durante os recessos de seus haréns; enquanto abaixo deles vegetam os párias, cobertos pela desonra, ou os escravos, construindo com seu suor e suas lágrimas os edifícios rudes, gigantescos, das pirâmides. O mal dessas sociedades primitivas se devia, perguntamos, à liberdade ou à servidão?

Consideremos o mundo romano. O que encontramos no coração dessa sociedade, embora ela fosse a mais rica e mais poderosa da Antiguidade? Por um lado, o patriciado, composto de um pequeno número de homens enriquecidos pelos espólios do universo. A vida desses homens, como vocês sabem, era uma sucessão de sangrentas batalhas e orgias abomináveis! Além dessa casta toda-poderosa, que devorava a substância de um mundo inteiro como os abutres que vemos devorar os corpos daqueles derrotados por Mário [Nota: se dizia que o general romano Caio Mário carregava dois abutres de estimação em suas campanhas sangüinárias], o que vemos? Vemos a multidão empobrecida de proletários e a multidão aviltada de escravos! Vocês falam das misérias de nossa classe trabalhadora; por Deus! dolorosas e inspiradoras de compaixão como essas misérias podem ser, você dificilmente pode compará-las com aquelas dos proletários romanos. Pelo menos nossas classes trabalhadoras trabalham; elas não imploram! As pessoas de nossos escuros subúrbios não são vistas se enfileirando nos portões das explêndidas mansões de nossa aristocracia favorecida para implorar por esmolas! Eles não são vistos se lançando como cães às migalhas que os ricos jogam de suas mesas com uma aborrecida e desdenhosa mão! E também não são vistos organizando diariamente motins para obter uma distribuição de comida de graça. Não! A vida dos trabalhadores hoje em dia é inegavelmente pobre; mas ele ganha essa vida, ele é capaz de ganhá-la. O proletário romano não estava em posição de ganhar sua própria vida. Os ricos patrícios haviam monopolizado todas as indústrias e todo o solo, os quais eles exploravam por meio de seus escravos. Vítimas dessa desigual competição, a única escolha dos proletários era entre implorar, exilar-se ou morrer. Eles imploraram. E, contudo, a sorte desses degradados proletários ainda era mil vezes preferível àquela dos escravos. O proletário, ao menos, era um homem; o escravo, por sua parte, era apenas mais uma espécie de besta, de fardo, uma coisa! O escravo não possuía nada, nem mesmo um nome. Admitidamente, os trabalhadores pobres da zona rural de nosso próprio país merecem comiseração, eles, que passam suas vidas presos ao chão, freqüentemente obtendo em troca pelo duro trabalho deles nada além de um pedaço de pão preto para comer, uma roupa rude para vestir, uma casa de barro para dormir; mas dolorosa como for essa existência, quantos escravos romanos a invejariam! Lembrem-se das descrições de Plínio e Columela. [Nota: Caio Plínio Segundo (ou Plínio, o Velho) e Lúcio Júnio Moderato Columela, autores romanos que escreviam sobre a agricultura.] No coração da sorridente região rural da Itália eram encontradas, em intervalos periódicos, aquelas moradias escuras e fétidas chamadas esgastula. Essas eram prisões, ou, mais precisamente, estábulos, de escravos. Nas manhãs eles saíam em bandos, geralmente acorrentados; eles se espalhavam pela zona rural, levados por capatazes armados com chicotes, e cada ferimento deles era preenchido por suor e sangue juntos. Á noite, eles eram levados de volta aos ergastulum, onde, como animais que eram, eram amarrados ao lado de suas manjedouras. Para eles, não havia família além de uma imunda promiscuidade! Não havia Deus, mas um inexorável destino que deles roubava a humanidade e não deixava nem a esperança de uma vida por vir! Tal, como vocês sabem, era a condição das massas trabalhadoras na Antiguidade. E no entanto o mundo ainda não foi sujeitado à lei do laissez-faire!

Mais tarde, o que vemos? A situação das pessoas foi melhorada com a queda do monstruoso edifício do Império Romano? Moralmente, sim, sem dúvida, pois o cristianismo lhes proveu de sublimes consolações; materialmente, não! Durante a Idade Média, a vida das pessoas, tanto servas ao solo do campo quanto servas às corporações das cidades, nada foi além uma longa angústia. A Idade Média foi um período de dor e sofrimento, e entre os gemidos de dor podia-se distinguir através da grande melancolia a voz do povo. Ainda depois, depois de tantas férteis descobertas, depois que a pólvora trouxe à justiça a tirania dos senhores feudais, depois que a imprensa dissipou a profunda escuridão da ignorância, depois que a bússola nos trouxe um novo mundo, deixaram as pessoas de sofrer? Sob Luís XIV — sob o reino daquele rei o qual se diz ter trazido tantas glórias e tanto poder para a França — qual era a condição das pessoas? Era superior à de hoje em dia? Todos sabem que a celebrada passagem do Dízimo Real de Vauban (Nota: economista francês Sébastien Le Prestre de Vauban (1633-1707)], na qual aquele ilustre homem de boa fé caracterizou a situação da França em perturbadores termos:

“É certo”, ele escreveu, “que o mal foi levado ao extremo, e se não for remediado, as pessoas humildes cairão num extremo do qual elas nunca sairão; as estradas do campo e as ruas das cidades e vilarejos estão recheadas de esmoléus tirados de suas casas pela fome e nudez.

“De toda a pesquisa que eu fui capaz de fazer durante os vários anos a que eu me dediquei a ela, eu notei que em tempos recentes quase um décimo do povo está reduzido a pedir esmolas, e de fato pede; quanto aos outros nove décimos, cinco não estão em posição de dar-lhes nada, uma vez que eles próprios estão pouco distantes daquela mesma infeliz condição; dos quatro décimos restantes, três estão preocupados e sobrecarregados de dívidas e processos; e o último décimo — onde eu coloco todos os homens da espada e do robe, eclesiásticos ou seculares, toda a alta e distinta nobreza, todos aqueles com responsabilidade militar ou civil, os mercadores de sucesso, os rentiers burgueses e as classes mais confortáveis — não se pode contar mais que cem mil famílias; e eu não penso que estaria errado em dizer que não mais que dez mil famílias, grandes ou pequenas, podem ser descritas como vivendo com muita tranqüilidade.”

Essa era a condição das pessoas antes de a liberdade do trabalho ter chegado.

Além disso, ao longo desse grande período de sofrimento, qual era o clamor da multidão? O que era pedido pelos cativos do Egito, pelos escravos de Spartacus, pelos camponeses da Idade Média e mais tarde pelos trabalhadores oprimidos pelas corporações e guildas? Eles reclamavam a liberdade!

Eles disseram uns aos outros: nossas consciências, nossos pensamentos, nosso trabalho são oprimidos e explorados por homens que se impuseram sobre nós pela violência ou pela fraude. Alguns deles nos proíbem de amar a Deus e orar para ele de outra forma que não a deles; outros exigem que estudemos Deus, o homem e a natureza de acordo com seus livros, aprisionando nossos pensamentos dentro de um círculo de ferro de seus sistemas nos proibindo sob pena de morte de quebrá-lo; outros ainda, depois de terem acorrentado nossas almas, acorrentam nossos corpos. Eles exigem que vivamos presos como uma planta ao lugar de nosso nascimento e lá eles exercem seus privilégios de nos tirar a maior parte dos frutos de nosso trabalho e suor. Rompamos, mesmo arriscando nossas vidas, esses laços que nos ferem; exijamos, para todos, tanto a liberdade da alma quanto a do corpo; reclamemos, para todos, o direito natural de acreditar, pensar e agir livremente — e nossos sofrimentos terão um fim. Nossas almas não estarão satisfeitas uma vez que obtenhamos a elas acesso livre ao reino imaterial — a habilidade de navegar pelo imenso e maravilhoso oceano da mente, sem ser limitado pelo cabo de ferro de um sistema imposto? Nossas necessidades físicas não serão totalmente satisfeitas uma vez que o reino material esteja livremente aberto para nós — assim que nenhum grilhão nos proibir de trabalhar e comerciar nossos produtos sobre toda a superfície dessa fértil terra da qual a Providência generosamente nos dotou? Nos tornemos livres e seremos felizes!

Esse era o clamor da humanidade oprimida. Bem! Vocês supõem, portanto, que a humanidade estava errada quando ela levantou, de século para século, esse longo clamor de aflição e esperança? Vocês supõem que em sua incessante busca pela liberdade, a humanidade corria atrás de uma vã ilusão? Não! Olhem para seus corações e vocês não se negarão a afirmá-lo; vocês não se negarão, vocês Brutus do socialismo, que a liberdade é apenas um nome vazio!

Vocês sem dúvida objetarão que a humanidade ainda sofre. Seguramente. Mas, e insisto em manter este fato à frente de seus olhares, ela sofreu antes da chegada da liberdade na terra, e seus sofrimentos então foram maiores e mais intensos do que são hoje em dia.

Vocês não podem, portanto, sem serem culpados de um grosseiro anacronismo, culpar a liberdade pelos males que afligiam as classes trabalhadores antes de 89; é com maior justiça que vocês os imputam àqueles que subjugaram os trabalhadores desde então? O exame dessa questão eu reservo a uma carta futura.

Um Sonhador

[Nota: Este artigo foi originalmente publicado anonimamente. Molinari reconheceu sua autoria em seu livro de 1899, La Societé Future, onde escreveu: “Esse apelo, o qual incidentalmente carrega a marca da inocência confiante da juventude, foi, como os eventos demonstraram, totalmente prematuro. Ele não foi ouvido, mas deve-se permitir ter esperança de que ele seja ouvido algum dia e que o socialismo, contribuindo aos economistas suas forças contingentes, os ajudará a superar a resistência daqueles interesses egoístas e cegos que se colocam além da necessária transformação da organização política e econômica que cessaram de ser adaptadas às condições da existência presentes das sociedades.”]

Tradução de Erick Vasconcelos

Revisão por Larissa Guimarães

Gustave de Molinari

foi um economista belga associado à escola liberal francesa, considerado por Frédéric Bastiat como o continuador de seus trabalhos, e provavelmente o primeiro autor anarco-capitalista. De 1871 a 1876, editou o Journal des Debats e, de 1881 a 1909, o Journal des Économistes.